segunda-feira, julho 07, 2003



Se fosse uma comédia, seria daquelas que provocam gargalhadas pelo surreal da situação, por tocar as raias do absurdo...



Pressões de Grupos Radicais Provocam Censura nas Escolas dos EUA


Por PEDRO RIBEIRO
Público, Segunda-feira, 07 de Julho de 2003



Um manual de liceu propunha um texto sobre um homem cego que, sem ajuda, subiu ao cimo do monte McKinley (no Alaska, a maior montanha dos EUA). O texto foi rejeitado pelo Departamento de Educação do estado norte-americano de Nova Iorque. Os motivos: primeiro, a história era discriminatória para os deficientes - porque sugere que as pessoas com deficiências físicas têm mais dificuldade em cumprir algumas tarefas. Segundo, a era-o também para as crianças que vivem em regiões planas, que ficam em desvantagem perante os alunos que têm experiência de zonas montanhosas.

Este é só um dos exemplos citados em "The Language Police", um livro da historiadora da educação Diane Ravitch sobre as práticas de autocensura na edição de manuais escolares e de exames nos EUA. Ravitch conta como as pressões de grupos radicais, à esquerda e à direita, intimidaram as autoridades escolares e as editoras a retirar qualquer passagem dos textos que possa ser vista como "ofensiva".

A auto-censura nas escolas americanas foi exposta no ano passado quando o "New York Times" noticiou que os exames de literatura no estado de Nova Iorque expurgavam ou reescreviam várias passagens de textos de autores clássicos que incluíssem palavras ou ideias que pudessem ser entendidas como "discriminatórias" ou "perturbantes".

Numa passagem de um texto de Ernesto Galarza nesse exame, um homem descrito como "um português gordo" era alterada para "um português pesado". Ravitch, no seu livro, conta como esta prática está generalizada no sistema educativo americano.


Nem corujas nem bolos

Por exemplo, a palavra "gordo" não pode ser usada, porque é ofensiva para as pessoas "pesadas" ou "obesas". Não se pode falar em corujas, porque na cultura de uma das tribos índias (outro termo que não se pode usar, deve falar-se em "primeiras nações americanas") dos EUA a coruja é símbolo de morte. Aliás, não se pode falar de morte, violência, sexo ou quaisquer temas políticos ou sociais que tenham o mínimo de controvérsia, porque isso pode perturbar as crianças.

Este código de censura não é unificado, porque nos EUA não há um ministério da educação centralizado. O ensino americano é regulado por "school boards", administrações locais cujos membros são escolhidos por eleições gerais. Cada "school board" elabora as suas directivas para garantir que os manuais escolares ou exames não são "ofensivos".

A outra vertenta da auto-censura está nas próprias casas editoriais. Muitos manuais foram alvo de campanhas da parte de grupos de activistas que objectavam ao seu conteúdo. Por isso, as editoras têm equipas de censores que analisam todos os conteúdos, de forma a evitar qualquer espécie de controvérsia.

Isso resulta num ramalhete de proibições. Uma história sobre amendoins foi rejeitada porque há pessoas alérgicas a este alimento e, além disso, os manuais devem evitar referências a comidas "não nutritivas" (não pode haver bolos, doces ou carne).

O movimento de auto-censura começou nos anos 60, com noções de senso comum como não mostrar indivíduos de minorias étnicas como sistematicamente pobres. Agora nunca podem ter minorias étnicas como pobres.

Da mesma forma, para evitar acusações de discriminação por idade, pessoas idosas só podem aparecer se estiverem a "fazer compras, dançar, participar em desportos activos"; não podem ter "bengalas, sapatos ortopédicos ou cadeiras de rodas" e é proibido mostrá-las em cadeiras de baloiço, a tricotar, em jogos sedentários como jogar cartas, ou a "falar do antigamente".


"Bowdlerizar" os clássicos

As directivas são formuladas através da "combinação do fundamentalismo religioso de direita e do politicamente correcto de esquerda", escreve Ravitch. Estes grupos "pretendem criar uma nova sociedade, completamente inofensiva para todos; para lá chegar, é preciso uma boa dose de censura".

Ambos os grupos acreditam no poder da linguagem e numa capacidade totalitária das escolas de moldar o pensamento das crianças. Os campos mais afectados pela "polícia da linguagem" são a história, o ensino da língua e a literatura (muitos livros "controversos", incluindo a maioria dos clássicos da língua inglesa, são banidos e substituídos por textos de autores semi-desconhecidos; nas palavras de um editor citado por Ravitch, "nenhum livro escrito antes de 1970" pode ser utilizado).

Mas até disciplinas aparentemente "neutras" podem ser afectadas. Os livros de matemática incluem biografias de mulheres ou indivíduos de minorias étnicas com contributos para esta ciência, para cumprir o objectivo de apresentar uma "visão multicultural"; os de biologia não podem referir a teoria da evolução de Darwin para não ofender os cristão criacionistas.

Quando o "New York Times" descreveu algumas destas práticas nos exames do estado de Nova Iorque, houve grande discussão pública. Muitos críticos atacaram duramente a "bowdlerização" de textos clássicos ("bowdlerizar" é um termo da língua inglesa que apareceu no século XIX, quando um editor inglês chamado Thomas Bowdler resolveu lançar uma versão "limpa" das obras de Shakespeare, chamada "Shakespeare para a Família")

As autoridades escolares de Nova Iorque prometeram não voltar a incorrer nesta prática, mas os testes deste ano reincidiram. Diane Ravitch contou ao PÚBLICO que, por exemplo, uma passagem em que é usada a expressão "meu amor" foi alterada para "meu amigo". "Talvez nos próximos exames as coisas mudem..."


http://jornal.publico.pt/2003/07/07/Sociedade/S03.html

salamandrine 16:39



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